sábado, 24 de maio de 2008

Pablo Neruda - TERCEIRA RESIDÊNCIA


























"A poesia acompanhou os agonizantes e estancou as dores, conduziu às vitórias, acompanhou os solitários, foi queimante como o fogo, leve e fresca como a neve, teve mãos, dedos e punhos, teve brotos como a primavera, teve olhos como a cidade de Granada, foi mais veloz do que os projécteis dirigidos, foi mais forte pelas fortalezas: deitou raízes no coração do homem."

Pablo Neruda



UM LIVRO EM CHAMAS
por José Eduardo Degrazia





"O papel usado fora fabricado com restos de roupas de soldados mortos e feridos, com cartazes e bandeiras inimigas. Conta Neruda nas suas memórias: "Mal meu livro ficou impresso e encadernado, precipitou-se a derrota da República". (NERUDA, Pablo. Confesso que vivi. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2003).


...





"Não só a guerra foi assunto da poesia de Neruda nesse momento, mas também o fustigar contra as ditaduras que infestavam o continente americano, como no poema Dura elegia, contra Getúlio Vargas, sobre Luís Carlos Prestes, que reverencia o trabalho infatigável de sua mãe para libertá-lo. São poemas que já não têm a carga vital de Espanha en el corazón, poemas da carne e do sangue do poeta, mas também são grandes obras em prol da liberdade dos povos, escritas ainda antes do congresso de Moscou de 1955 em que Kruschev desmistificou a figura de Stalin."





PARA COMEÇAR, pára sobre a rosa


pura e partida, pára sobre a origem


de céu e ar e terra, a vontade de um canto


com explosões, o desejo


de um vento imenso, de um metal que recolha


guerra e desnude o sangue.


Espanha, cristal de taça, não diadema,


sim machucada pedra, combatida ternura


de trigo, coro e animal ardendo.





Bombardeio


Maldição





Ananhã, hoje, por teus passos


um silêncio, um assombro de esperanças


como um canto maior: uma luz, uma lua,


lua gasta, lua que passa de mão em mão,


de campanário em campanário!


Mãe natal, punho


de aveia endurecida,


planeta


seco e sangrento dos heróis!





Quem?, pelos caminhos, e quem,


quem, quem, em sombra, em sangue, quem?


em faísca, quem,


quem? Cai


cinza, cai


ferro


e pedra e morte e pranto e chamas,


quem, quem, minha mãe, quem, onde?


Pátria sulcada, juro que em tuas cinzas


nascerás como flor de água perpétua,


juro que de tua boca em sede sairão ao ar


as pétalas do pão, a derramada


espiga inaugurada. Malditos sejam,


malditos, malditos que com acha e serpente


chegaram à tua arena terrestre, malditos


os que esperaram este dia para abrir a porta


da mansão para o mouro e o bandido:


conseguiste o quê? Trazei a lâmpada,


olhai o solo empapado, olhai o osso negro


comido pelas chamas, a vestimenta


da Espanha fuzilada.





Espanha pobre


por culpa dos ricos





(...)





Perguntareis: e onde estão os lilases?


E a metafisica coberta de papoulas?


E a chuva que continuamente golpeava


suas palavras penetrando-as


de buracos e pássaros?





Vou contar tudo o que passou comigo.





Eu vivia num bairro


de Madri, com os sinos,


com relógios, com árvores.





Via-se desde lá


o rosto seco de Castela


como um oceano de couro.





Minha casa era chamada


a casa das flores, porque por toda parte


estalavam gerânios: era


uma bela casa


com cachorros e crianças.


Lembras, Raul?


Lembras, Rafael?


Frederico, te lembras


debaixo da terra,


tu lembras da minha casa com balcões e onde


a luz de Junho afogava a flor na tua boca?


Irmão, irmão!





Tudo


eram grandes vozes, sal de mercadorias,


aglomerações de pão palpitante,


mercados do meu bairro de Argüelles com sua estátua,


como um tinteiro pálido entre as merluzas:


e o azeite chegava até as colheres,


um profundo bater


de pés e mãos enchia as avenidas,


metros, litros, essência


aguda de vida





(...)





"Neruda não estava sozinho na luta contra a barbárie nazista. As melhores vozes estavam com ele como bem podemos ver nos poemas Carta a Stalingrado e Telegrama de Moscou, de Rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, ou os do hermético e cristão Murilo Mendes no seu Poesia e liberdade - para citar apenas dois brasileiros do mesmo período".





O homem, a luta e a eternidade
de Murilo Mendes



Adivinho nos planos da consciência


dois arcanjos lutando com esferas e pensamentos


mundo de planetas em fogo


vertigem desequilíbrio de forças,


matéria em convulsão ardendo pra se definir.





Ó alma que não conhece todas as suas possibilidades,


o mundo ainda é pequeno pra te encher.


Abala as colunas da realidade,


desperta os ritmos que estão dormindo.





À guerra!





Olha os arcanjos se esfacelando!


Um dia a morte devolverá meu corpo,


minha cabeça devolverá meus pensamentos ruins


meus olhos verão a luz da perfeição


e não haverá mais tempo.

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